Por que o português do Brasil é visto como errado em Portugal?

Na reportagem da DW que mencionei no vídeo de ontem, uma brasileira vivendo em Portugal desabafa: mesmo com cidadania europeia, mesmo falando a mesma língua, ainda se sente uma cidadã de segunda classe. Entre os motivos? O sotaque.

Sim, o sotaque.

Aqui não estamos falando somente de gramática, mas de entonação. Daquela melodia que denuncia a origem. Do português do Brasil que, em Lisboa, soa estranho — quase como se fosse um idioma estrangeiro.

Isso me fez lembrar de Preconceito Linguístico, o livro de Marcos Bagno. Publicado há mais de vinte anos, ainda provoca reações intensas. E não é difícil entender por quê.

O que Bagno propõe parece, à primeira vista, um ataque à língua portuguesa. Uma afronta ao que muitos de nós aprendemos como regra: que há um jeito certo de falar — e, por consequência, infinitos jeitos errados. Quem foi educado dentro da lógica da norma culta tende a reagir com resistência, como se o livro relativizasse tudo, ameaçasse o rigor, bagunçasse a ordem do discurso.

Mas o que Bagno faz, com firmeza e método, é desmontar uma ilusão confortável: a de que a gramática normativa é neutra, natural, universal. Ela não é. A norma culta — a que se cobra na escola, nos vestibulares, nas entrevistas — é apenas a variante da elite. É a forma de falar dos que detêm poder simbólico. E por isso é tratada como modelo.

Quem domina essa variante entra em espaços. Quem não domina, é mantido do lado de fora — ou entra calado. E o mais perverso é que essa exclusão se esconde atrás de um argumento técnico: “não é preconceito, é só correção”.

Mas quem já foi corrigido com ironia, com desdém, com superioridade, sabe: a gramática pode ser uma arma. E quase sempre é.

Muita gente passa a vida tentando apagar a própria voz. Corrige a si mesmo no meio da frase. Disfarça o sotaque. Tenta vestir a norma culta como se fosse um terno emprestado. Mal ajustado, desconfortável, mas necessário para “falar certo”.

E isso não acontece só entre brasileiros. A brasileira da reportagem da DW sofre preconceito em Portugal mesmo falando português. Porque, para o ouvido europeu, o português do Brasil é “errado”. É língua de novela, de samba, de informalidade. É um português de segunda classe.

A ironia é brutal: mesmo falando a mesma língua, ela continua estrangeira. Porque o sotaque, a prosódia, a cadência — tudo isso carrega uma origem que, aos ouvidos do outro, soa inferior.

O que Bagno propõe, no fundo, é escuta. Não se trata de abandonar a norma culta. Mas de reconhecer que ela é uma ferramenta — e que, como toda ferramenta, pode ser usada para abrir ou para fechar portas.

O preconceito linguístico é talvez o mais silencioso dos preconceitos. Porque não parece violência. Parece correção. Mas por trás do “não é assim que se fala” existe, muitas vezes, um “não é assim que se é”.

E talvez a pergunta mais honesta seja: quem é que decide o que vale ser dito?


Confira aqui a obra Preconceito Linguístico de Marcos Bagno


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Comentários

  1. Nem é preciso ir a portugal, sotaque nordestino é considerado como segunda classe no Brasil

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    1. Sim, o Bagno aborda muito isso neste livro.

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  2. Marco Bucci11:22 AM

    Caro Henry, tenho uma grande curiosidade em saber se o português de Portugal é homogêneo de norte a sul do país.

    Pergunto porque aqui na Itália, como você bem sabe, há uma diferença abissal não só nos dialetos locais, mas também na pronúncia do italiano padrão que se aprende nas escolas. E isso é fruto da história da península itálica que recebeu influências de praticamente todos os cantos do Mediterrâneo.

    Me lembro de ter lido em algum lugar que Portugal é o país do mundo que tem as fronteiras mais antigas de toda a Europa, o que pode ajudar a entender um eventual português mais homogêneo.

    Enfim, não estou defendendo ninguém e racismo tem que ser combatido (principalmente com uma forte educação) e só queria matar essa curiosidade.

    Um grande abraço!

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    1. Anônimo1:38 PM

      Não, não é homogéneo. Em Portugal, também há vários sotaques. São similares mas têm as suas diferenças. Os sotaques madeirense e açoreano são os que se mais se distinguem, talvez por se delimitarem a ilhas e, por isso, estarem mais isolados.
      Há uma certa cultura que o português 'correcto' sejam o que é falado em Lisboa.
      Penso que isso não se aplica só a portugueses vs brasileiros também acontece noutros países e, como foi falado no artigo e no livro, dentro dos próprios países.

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  3. Eu ja li esse livro, minha irma mais velha e formada em letras e tem esse livro. Eu sou de São Luís Maranhão. Aqui existe uma lenda que aqui na capital Maranhense se fala o portugues mais correto do Brasil que e de uma estupidez gigantesca. Tem pessoas que falam corretamente ja tem outras que falam errado, vou dar um exemplo: " Ah Amanha nos vsmos comer Bacalhau" Aqui em invés de se falar Bacalhau se fala Bacaiau. Parabens pelo seu texto.

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