“Mas posso dizer isso?”
"Henry, se te sentires confortável, eu te sugiro escrever sobre a "auto-censura" das pessoas de esquerda ao escrever, pelo medo de ser acusado de micro-agressões, e sobre a questão linguística do gênero neutro. Tu te arrisca a escrever sobre isto? "
A pergunta foi feita por uma apoiadora do canal, com cuidado. Não era uma acusação, nem uma provocação. Era um convite sincero à reflexão — e, no fundo, um pedido de coragem.
Não me senti intimidado. Não é de hoje que enfrento reações ásperas por pensar em voz alta. Já fui cancelado algumas vezes. Já perdi seguidores por levantar questões que pareciam “do lado errado”. Mas sigo falando e escrevendo. Não por valentia — mas por princípio.
Ainda assim, entendo quem cala. E mais: compreendo por que cala.
Nem sempre é medo. Às vezes é só cansaço.
Cansaço de explicar o óbvio. Cansaço de responder acusações inventadas. Cansaço de retificar o que nem sequer era erro.
É uma preguiça estratégica — não de pensar, mas de entrar, de novo, na mesma arena de sempre, com os mesmos rituais previsíveis: indignação performativa, frases tiradas de contexto, disputas de pureza moral. E no fim, nenhuma escuta.
O problema não é apenas o patrulhamento — é o esgotamento.
Você pensa duas vezes antes de escrever, não por temor à crítica legítima, mas porque já conhece o roteiro. E ele não leva a lugar algum.
Esse silêncio não é omissão. É economia de energia.
É o recuo de quem tem o que dizer, mas prefere guardar a pólvora para batalhas que valham a pena.
Em muitos casos, não é medo nem preguiça — é um gesto de alívio. Um pequeno suspiro psíquico diante do excesso de estímulo, de cobrança, de disputa. Evitar a discussão não significa covardia, mas sobrevivência simbólica. O sujeito contemporâneo já não silencia apenas por cálculo político — silencia porque precisa se proteger da fricção constante. É o alívio como mecanismo de contenção: não redime, não resolve, mas suspende o atrito. E às vezes, isso basta para seguir.
E isso, no fundo, é uma tragédia: quando até os pensadores começam a se calar, não por medo do autoritarismo, mas pelo peso da vigilância simbólica exercida pelos próprios pares.
A linguagem como campo de batalha
Durante muito tempo, a esquerda teve a palavra como ferramenta de libertação. A linguagem era lugar de disputa, sim — mas também de criação. Era possível nomear o mundo de outro modo, abrir frestas, inventar sentidos.
Hoje, esse impulso criativo parece ter sido substituído por uma espécie de ortodoxia semântica. Fala-se muito em pluralidade, mas exige-se adesão a um vocabulário específico — e em constante mutação. Quem não adota os termos corretos, do jeito certo, no tempo certo, é empurrado para fora do círculo da legitimidade.
O caso do gênero neutro é emblemático. Não se trata apenas de uma proposta linguística — trata-se de um teste de fidelidade simbólica. Usar o “todes” ou o “elu” é, para alguns, um gesto de respeito; para outros, um marcador de identidade política. Mas recusar-se a usar já não é mais apenas uma preferência gramatical: é lido como hostilidade.
A gramática virou gesto. E o gesto virou prova.
Não importa se a recusa vem por estilo, por convicção filosófica, por clareza textual ou por desconforto com uma mudança forçada e artificial da língua. A militância não quer saber dos motivos — quer saber se você se enquadra.
É nesse ponto que a linguagem deixa de ser instrumento de pensamento e passa a ser um filtro ideológico. Em vez de pensar melhor o mundo, ela serve para separar os puros dos impuros. E, nesse jogo, a nuance é sempre a primeira a ser sacrificada.
A palavra perde densidade. Vira senha. E o discurso deixa de ser espaço de diálogo para se transformar em rito de pertencimento.
A nova ortodoxia progressista
O paradoxo é que, em nome da liberdade, criou-se uma nova ortodoxia. Uma vigilância simbólica que não parte do Estado, mas da própria militância — muitas vezes jovem, bem-intencionada, mas devotada a um moralismo militante que se parece demais com aquilo que supostamente combate.
A obra A Armadilha da Identidade, de Yascha Mounk, nomeia esse fenômeno com precisão. Para ele, o que antes era um esforço legítimo por inclusão e justiça social transformou-se num sistema de crenças que valoriza a identidade acima de qualquer argumento — e trata qualquer crítica como agressão.
Nesse sistema, não importa o conteúdo do que você diz. Importa quem você é, como se identifica, que lugar ocupa na hierarquia simbólica da dor. O valor de uma ideia passa a depender da biografia de quem a emite — e não da sua força interna, nem da sua coerência. A verdade vira propriedade afetiva. A linguagem, território.
A militância identitária, ao se tornar normativa, assume contornos religiosos. Há dogmas. Há heresias. Há liturgias lexicais. E, acima de tudo, há um medo difuso de dizer algo que desagrade ao código moral vigente naquele dia, naquela bolha, naquele algoritmo.
O problema não é a denúncia dos abusos — é a cristalização de uma cultura que transforma o gesto crítico em pecado e a divergência em traição.
O resultado é o oposto do que a esquerda historicamente defendeu: em vez de ampliar o campo de possibilidades, ele se estreita. Em vez de provocar pensamento, impõe adesão.
E isso não apenas afasta aliados sinceros. Isso infantiliza o debate público — e entrega à extrema-direita a prerrogativa de parecer a única força disposta a desafiar os consensos.
O risco da crítica ser confundida com traição
Há um novo tipo de julgamento em curso. Um tribunal sem rosto, sem instância de apelação, mas com poder real sobre reputações. Nele, você é culpado até que se prove o contrário. Você é suspeito até que demonstre pureza. E essa pureza não diz respeito a intenções — diz respeito à linguagem. Ao vocabulário. À fidelidade simbólica às palavras de ordem do momento.
Quem questiona, mesmo com argumentos, é visto como ameaça.
Quem propõe uma reflexão mais ampla, como desvio de rota.
Quem critica um excesso, como traidor infiltrado.
O espaço para a ambiguidade desaparece. O humor é policiado. A ironia, desautorizada. A dúvida, punida.
E pensar fora do script, mesmo que partindo dos mesmos valores de justiça e dignidade, se torna perigoso.
Essa lógica inverte tudo: o dissenso interno, que deveria fortalecer o campo progressista ao torná-lo mais lúcido e autocrítico, passa a ser interpretado como enfraquecimento. A divergência deixa de ser potência — e vira sintoma de deslealdade.
Mas não existe pensamento verdadeiro sem risco.
A crítica, quando feita com responsabilidade, é sinal de vitalidade — não de ameaça. É ela que nos impede de cair no dogma, no rebanho, na caricatura.
Ao impedir a crítica em nome da causa, a militância identitária cava sua própria armadilha. E não só bloqueia o debate: ela entrega o monopólio da discordância à direita, que então posa de única voz disposta a enfrentar os absurdos.
É uma entrega simbólica desastrosa — e totalmente evitável.
Autonomia intelectual como resistência
Diante desse cenário, é tentador desistir. Calar. Ajustar-se ao script. Ficar na zona segura das frases aceitas, dos temas permitidos, dos vocabulários certificados. Mas esse conforto tem um preço: a amputação do pensamento.
A única saída honesta é reafirmar a autonomia intelectual — mesmo que ela custe aplausos, curtidas ou convites. Pensar livremente, dizer com clareza, arriscar-se no território da dúvida. E, sobretudo, recusar o sequestro simbólico da linguagem pela militância puritana.
Não se trata de jogar contra as causas progressistas — pelo contrário. Trata-se de recusá-las como dogma, para que possam continuar vivas como horizonte. Porque toda causa que se torna indiscutível deixa de ser política — e vira religião.
A boa notícia é que esse clima parece estar mudando.
A patrulha identitária já não exerce o mesmo poder. Criticar certos abusos já não é mais heresia. O cancelamento, quando ocorre, perdeu sua força unânime. Muitos dos que antes se calavam por cansaço agora se sentem legitimados a falar — não por raiva, mas por lucidez. Porque até o cansaço cansa. E chega um momento em que o silêncio começa a trair a consciência.
Se existe algo a ser resgatado nesse novo tempo, é a coragem da dúvida, o valor da complexidade, a beleza de pensar sem medo. A crítica, quando nasce do compromisso com a justiça, não enfraquece a esquerda. Ela a fortalece.
Talvez estejamos, enfim, voltando a respirar.
Só pensamento.
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Eu faco de mim as tuas palavras. Eu estou cansada vou ate usar a frase da musica: " Eu estou muito cansada "
ResponderExcluirEstou cansada de falar de politica e depois encher de Bolsonaristas Falando bobagens. Por isso que eu prefiro assistir teus videos, o do musicalia e da Vinilteca e menos um stress psicologico para mim.