O luxo e a lança: estética, valor e fetiche desde a pré-história
O valor simbólico dos produtos não nasceu com o capitalismo. Da estética pré-histórica às grifes globais, seguimos pagando mais pelo que representa do que pelo que é.
A marca vale mais que o produto?
Nas últimas semanas, as redes sociais foram tomadas por vídeos curtos de operários chineses expondo o segredo mais mal guardado do mundo do luxo: quase tudo, das bolsas de dez mil euros aos cosméticos com sotaque francês, é feito na China.
As costureiras mostram os acabamentos, os logotipos bordados com precisão, as etiquetas que serão costuradas depois — já na Europa, é claro, para garantir o “Made in France” ou “Made in Italy” que faz o preço saltar. A lógica é conhecida, mas ver o processo exposto por dentro ainda causa incômodo. Quase como se a mágica tivesse sido desfeita diante da câmera de um celular.
A pergunta, no entanto, não é nova: se a matéria-prima é a mesma, se as mãos que produzem são as mesmas — por que o valor é tão diferente?
A resposta está no símbolo. No fetiche. No brilho que não vem do couro, mas do logo.
Há séculos, aprendemos a pagar mais pelo que carrega uma promessa — de status, de prestígio, de pertencimento. A mercadoria não vale apenas pelo que é. Vale, sobretudo, pelo que representa.
Mas talvez o que estamos assistindo agora seja algo raro: o momento em que o valor simbólico começa a se desgastar. Quando o fetiche se mostra frágil. E, por um segundo, vemos a mercadoria como ela é: só um objeto.
Quando o objeto vira mito
Marx chamou isso de fetichismo da mercadoria. Um nome esquisito, mas preciso. No capitalismo, os objetos deixam de ser apenas coisas úteis. Eles ganham uma aura. Passam a valer não pelo trabalho embutido neles, mas pela ilusão de que têm valor por si só.
A mercadoria se desconecta de quem a produziu. E mais: da própria utilidade que deveria justificar sua existência.
Ninguém compra uma bolsa de dez mil euros para carregar objetos. Compra-se uma ideia. Um símbolo. Um sinal de distinção.
O que era função vira fetiche. O objeto se transforma em mito — como se surgisse do nada, sem história, sem suor, sem China.
E quanto mais se apaga o processo, mais se eleva o produto.
É esse apagamento que sustenta o valor simbólico. É isso que permite à mercadoria flutuar acima da realidade.
Mas toda ficção tem um custo. E todo mito, um momento de exaustão.
O valor que vem do tempo e do gesto
Muito antes do capitalismo, já sabíamos transformar objetos em símbolos.
Da pré-história, arqueólogos encontraram pontas de lança e flechas talhadas com precisão que ultrapassa a necessidade funcional. Aquelas lascas simétricas, repetidas com esmero, não serviam apenas para matar. Eram belas demais para serem só práticas.
Ali havia mais do que sobrevivência. Havia intenção estética. Talvez ritual, talvez status, talvez puro deleite visual — um gesto que excede a utilidade e inaugura o simbólico.
Ao longo dos séculos, esse gesto se sofisticou. O pote de cerâmica decorado, o tecido tingido à mão, o metal moldado com marcas de autor. Artesãos medievais já assinavam discretamente suas peças. Em Veneza, o vidro era tão precioso que os mestres sopradores eram proibidos de deixar a cidade.
Antes da marca registrada, existia o traço reconhecível. E com ele, o valor agregado.
Nem sempre esse valor era dinheiro. Às vezes era prestígio, às vezes fé, às vezes distinção dentro da tribo. Mas a lógica está ali: o objeto deixa de ser só coisa e passa a carregar algo que o ultrapassa.
O fetiche não nasceu com a indústria. Ele apenas mudou de nome e escala.
O produto como promessa de status
No mundo contemporâneo, o valor simbólico não está mais no objeto, mas no logotipo. O detalhe que antes era artesanal virou marca. E a marca virou o bem mais precioso de qualquer empresa.
Não importa onde foi feito. Importa quem assina.
Você não compra uma camiseta. Compra um emblema. O tecido é secundário. O corte, irrelevante. O que conta é a promessa invisível que o nome carrega.
O branding assumiu o lugar da estética, da tradição, da escassez. As marcas não vendem produtos — vendem narrativas. Histórias cuidadosamente construídas, associadas a estilo, exclusividade, pertencimento. Uma bolsa Louis Vuitton não é uma bolsa. É um certificado de que você entrou em um clube.
O paradoxo é que essa ficção depende de um teatro constante. O luxo precisa parecer raro, mesmo quando é produzido em escala industrial. Precisa parecer europeu, mesmo quando é fabricado em fábricas chinesas com milhares de unidades por dia.
A etiqueta pode dizer “Made in Italy”, mas a verdade está nas mãos invisíveis que costuram em silêncio. O produto continua o mesmo — o que muda é a moldura simbólica.
E por isso o fetichismo ainda funciona. Porque ninguém compra só o que vê. Compra o que acredita estar comprando.
E se a mercadoria voltasse a ser só coisa?
Talvez estejamos vivendo o começo do fim de uma ilusão. Quando operários chineses filmam os bastidores do luxo, não estão apenas expondo uma contradição do mercado global — estão desmanchando um teatro.
A mágica depende do segredo. E o segredo está ruindo.
A globalização produziu um paradoxo: quanto mais as mercadorias circulam, mais seus mitos se desgastam. A ideia de exclusividade não sobrevive ao excesso. O objeto continua caro, mas seu encanto se dilui. O luxo perde a aura quando se torna repetição.
Não é a crítica que mata o fetiche. É a saturação.
Se tudo pode ser replicado, terceirizado, falsificado — o que ainda tem valor? Talvez o gesto. Talvez o tempo dedicado. Talvez a história por trás de algo que não tenta ser mais do que é.
O fetiche da mercadoria transformou objetos em símbolos. Agora, os símbolos estão voltando a ser só objetos.
E pode ser que, no fim, isso seja um alívio.
Só pensamento.
Inscreva-se na nossa newsletter semanal:
Boa Tarde Henry
ResponderExcluirEu acho um absurdo
Alem da gente pagar mais caro por um produto as pessoas que fizeram não recebem um tostao.
Sem falar que nem sao reconhecido pelo seu trabalho
E a mesma coisa eu fazer im tapete e não ganhar nem ser reconhecida qyem e reconhecido foi um outro que nem siquer fez o bordado... E revoltante!
Parabens pelo video e artigo tambem.
Não é exatamente isso, Rafhisa. Os operários que fazem os produtos recebem salários e são inclusive bem justos ( nivel acima dos nossos salários no Brasil). As pessoas confundem a China com Vietnã e Cambodja, onde há muito trabalho escravo ou extremamente mal remunerado.
Excluir