Jianwei Xun: A Criação de um Filósofo Fictício e a Crítica ao Consumo de Ideias com IA

 


Jianwei Xun existe

Ou, pelo menos, deveria.

A figura é sedutora: um filósofo chinês, com nome sonoro e um conceito instigante — hipnocracia. Um regime que domina não pela força, mas pela distração. Um império do entretenimento permanente. E por trás disso tudo, textos densos e ideias viralizáveis. Parecia o novo Zizek com olhos puxados.

Só que não havia chinês. Nem biografia. Nem universidade. Nem passaporte.

Mas havia um autor. Italiano. Real. Crítico. Andrea Colamedici, filósofo e estudioso de inteligência artificial. E havia um experimento.

Jianwei Xun, na verdade, é uma obra performativa — uma máscara criada intencionalmente para expor uma fragilidade contemporânea: nossa fome por autoridade, por teoria nova, por pensadores exóticos que dizem o que já suspeitávamos, mas com termos mais elegantes.

Não se tratava de fraude. Era arte crítica. Filosofia vestida de ficção. Um coletivo italiano já havia feito isso nos anos 90 com Luther Blissett. Depois, com Wu Ming Foundation. Inventaram identidades para mostrar como a mídia, o público e até a academia são seduzidos mais pela aparência do que pela substância.

Agora, com a IA como cúmplice, o gesto se renova — e se radicaliza.

E nós caímos direitinho.


O filósofo que não pensa, mas aparece

Jianwei Xun não é uma criação da IA.

É uma criação com a IA.

E isso muda tudo.

Não estamos diante de um delírio algorítmico autônomo — estamos diante de um experimento guiado, consciente, proposital. Um autor humano, Colamedici, com domínio técnico e intenção filosófica, utilizou ferramentas de geração de texto para criar um personagem fictício, publicar um livro, provocar o debate e observar as reações. O sucesso foi instantâneo. Em poucos meses, foi traduzido para espanhol e francês, citado por Macron, e rapidamente adentrou o debate público.

É um jogo de espelhos. Mas não é um golpe.

É, na verdade, uma pergunta disfarçada de pensador: quem precisa existir para que levemos uma ideia a sério?

Quando a crítica é assinada por um italiano, também grande chances de sumir numa gaveta. Quando vem com um nome chinês e um perfil misterioso, ela se torna tendência. O experimento não revela a fragilidade da IA — revela a fragilidade do nosso desejo de ser guiado. Mostra o quanto ainda queremos que alguém venha de fora e nos diga: é por aqui, confie.

A IA, aqui, é apenas a marionete. O ventríloquo está entre nós.

E isso é o mais desconfortável: Xun não é um truque da máquina — é um reflexo do quanto nosso consumo de pensamento já foi terceirizado. O quanto trocamos autoria por autoridade. Presença por teatro.

A pergunta não é se Xun pensa. A pergunta é: por que acreditamos que ele pensava?


O mito da profundidade sintética

Jianwei Xun funcionou porque tinha tudo o que um filósofo contemporâneo precisa para ser levado a sério: uma origem cultural distante (mas não exótica demais), uma teoria com nome chamativo (hipnocracia), um vocabulário denso e autoconsciente, e, claro, uma dose calibrada de mistério.

Mas tudo isso foi gerado — não vivido.

E isso, curiosamente, pouco importou.

Não porque vivência seja dispensável, mas porque nos acostumamos a consumir pensamento como quem consome conteúdo: rápido, polido, digerível, com aparência de profundidade. É o fast-thought. A filosofia do feed.

E, nesse cenário, a IA não destrói a filosofia. Ela apenas a mima. Reforça seus vícios. Aperfeiçoa suas poses. Entrega exatamente o que esperamos: frases com efeito, conceitos que circulam, conclusões que tranquilizam, mesmo se forem perturbadoras.

Mas o experimento Xun, ao contrário do que parece, não celebra isso. Ele escancara o abismo: mostra que basta um nome, um estilo e um texto bem composto para que o pensamento seja aceito — mesmo que nada ali tenha sido experienciado, tensionado, arriscado.

O que Xun revela não é a potência da IA. É a carência simbólica da recepção.

A fome que temos por ideias prontas. A facilidade com que chamamos de “profundo” aquilo que apenas nos poupa do trabalho de pensar.

E talvez essa tenha sido a verdadeira provocação: nos fazer aplaudir um pensador que não existe… para lembrar que já faz tempo que deixamos de escutar os que existem de verdade.


O retorno da autoria mascarada

Mas o mais honesto — e talvez mais incômodo — é que o autor por trás de Jianwei Xun voltou ao palco.

Ele não desapareceu no anonimato, não capitalizou o engano, não fez carreira em cima da farsa. Ele explicou. Assumiu. Mostrou o bastidor. Revelou o processo, a intencionalidade estética e crítica por trás da máscara.

Ou seja: não foi engodo, foi ensaio.

Jianwei Xun não foi uma fraude para nos enganar. Foi um especetáculo para nos confrontar.

E nesse sentido, o gesto se alinha à tradição do Wu Ming, do Luther Blissett, do Guy Debord, dos situacionistas, dos hackers simbólicos. O uso da mentira como revelação. A ficção como denúncia. A máscara como crítica à própria estrutura de prestígio intelectual que sustenta a filosofia enquanto mercado de ideias.

E isso nos obriga a revisitar nossos próprios critérios.

Porque se o que dá valor a um pensamento é apenas seu estilo, sua origem, sua autoridade aparente — então não estamos lendo ideias. Estamos lendo projeções.

O autor de Jianwei Xun usou a IA para tensionar esse sistema. Nós, aqui, usamos a IA para produzir com consciência crítica. A diferença é a presença. A responsabilidade. O gesto de voltar e dizer: “fui eu quem disse isso, mesmo que tenha sido com outra voz”.


Nem fraude, nem salvação — só o abismo

O caso Jianwei Xun não é um alerta contra a inteligência artificial.

É uma fotografia — que nos mostra a nós mesmos.

Ele nos revela que a IA não é o inimigo da filosofia. É só mais uma tecnologia. O que ela expõe — quando usada com intenção crítica — é o quanto terceirizamos a experiência de pensar. O quanto estamos dispostos a aplaudir o vazio, desde que ele fale bonito e tenha uma bandeira estrangeira no currículo.

Mas também é preciso evitar o outro extremo: a romantização da dor, a ideia de que só pensa quem sangra, só cria quem sofre, só é autêntico quem escreve contra a vontade. Já dissemos antes — e mantemos: o pensamento não precisa do martírio para ser verdadeiro. Ele precisa de compromisso. De reflexão. De hesitação.

A IA pode sim ampliar nossa capacidade crítica. Pode nos ajudar a ver o que antes era invisível. Pode operar como lente, como lupa, como colaboradora simbólica. Mas isso só acontece se houver alguém segurando a lente com responsabilidade estética. Alguém que pensa com — e não por — ela.

Jianwei Xun é o contrário disso? Não. Ele foi isso também — só que do outro lado do espelho.

Não foi a IA que nos enganou. Foi nossa pressa em acreditar. Nossa fome de sentido terceirizado. Nosso desejo de consumir filosofia como se fosse identidade — e não travessia.

Não estamos, afinal, diante de uma fraude.

Estamos diante de uma pergunta:
quem ainda se responsabiliza pelo que diz?

Esse é o abismo.

E pensar — com ou sem IA — continua sendo o único gesto que não se deixa hipnotizar.


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