Quando até Mamãefalei conseguirá debater por escrito sem pedir ajuda pro coleguinha...
Antes da suspeita: o privilégio de ter começado antes da IA
Tive sorte. Comecei a escrever há vinte e cinco anos, numa época em que inteligência artificial era só enredo de ficção científica, não uma suspeita pairando sobre cada parágrafo. Publiquei colunas, crônicas, ensaios, críticas de cinema, dicas de viagens, contos, romances... se fosse fazer uma estimativa por alto, certamente mais de 2 milhões de palavras — com erros, com excessos, mas com uma voz que fui construindo aos poucos, testando frases, tropeçando em adjetivos, e às vezes, acertando no ritmo. Se algum texto soava artificial, era apenas porque eu ainda não sabia fazer melhor.
Hoje, esse luxo parece anacrônico. Diante de qualquer frase bem ritmada, de uma estrutura sólida, de uma articulação fluida entre ideias, surge a pergunta — explícita ou sussurrada: “Você escreveu isso sozinho?”
Ouvi isso recentemente sobre um texto publicado no blog. A crítica não era ao conteúdo, nem ao argumento. Era ao estilo. “Tem cara de IA”, disseram. E, por um segundo, me senti ofendido. Mas logo depois, perplexo. Porque o que estavam acusando de artificial era justamente o que levei décadas para construir: um texto claro, com cadência, com densidade sem arrogância. Um texto que, há alguns anos, seria lido como bem escrito — e só.
Não foi um algoritmo que deixou o texto com “cara de IA”. Foi o tempo. Foi o novo padrão de desconfiança, inaugurado não pelas máquinas, mas por nossa própria dificuldade de lidar com elas.
Tenho pena — não como condescendência, mas como constatação — de quem começa a escrever agora. Porque nunca será possível saber, com certeza, se o que você leu é mesmo obra da pessoa que assina. E mais: mesmo que seja, isso pouco importará. A dúvida se instalou. O texto virou uma zona cinzenta. A autoria, um ruído de fundo.
Talvez esse seja o verdadeiro impacto da inteligência artificial na literatura: não substituir o escritor, mas corroer a confiança na escrita.
O cenário atual: confusão, desconfiança e hibridismo inevitável
No mestrado que estou cursando agora, esse tema já ocupa os corredores — e, às vezes, os silêncios. Professores que há pouco tempo celebravam as possibilidades da IA agora hesitam. Outros, que nunca confiaram, se veem pressionados a lidar com o fato de que seus alunos escrevem cada vez mais com “ajuda”, ainda que ninguém saiba bem o que essa ajuda significa.
Estamos todos num território novo, e ninguém — absolutamente ninguém — sabe exatamente onde estão os limites. É aceitável pedir sugestões para estruturar um argumento? E se a IA reescreve um parágrafo que você já tinha rascunhado? E se ela propõe um título melhor, uma conclusão mais incisiva? Em que ponto a colaboração vira trapaça?
A verdade é que estamos entrando, sem retorno, numa era de criação híbrida. Todo texto será, de algum modo, contaminado — ou enriquecido — por inteligências artificiais. Seja na geração de ideias, na organização dos blocos argumentativos, na revisão do estilo ou na checagem de coesão. Alguns usarão pouco. Outros, muito. Mas ninguém escapará completamente.
E essa mudança tem consequências profundas. A mais visível delas é a erosão da noção de autoridade. Quando todo texto pode ter sido assistido, a assinatura perde força como selo de autenticidade. Já não se trata de quem escreveu, mas de como o texto é percebido.
O prestígio, antes associado à autoria e ao conteúdo, será cada vez mais determinado por algo mais volátil: o ethos, a imagem construída do autor diante da audiência. É a lógica do influenciador, aplicada à escrita. Não importa se você produziu tudo, parte, ou nada. Importa se as pessoas acreditam em você. Ou melhor: se acreditam em você enquanto figura pública, não enquanto sujeito escrevente.
Esse deslocamento muda tudo. O texto deixa de ser demonstração de competência e passa a funcionar como reflexo da autoridade simbólica que o autor conseguiu construir para si. Não se trata mais de demonstrar capacidade. Trata-se de sustentar uma persona — e torcer para que ela continue sendo crível.
A IA como ferramenta real para escritores reais
É estranho dizer isso logo depois de falar sobre o colapso da autoridade, mas talvez a inteligência artificial seja uma das melhores coisas que já aconteceram para quem escreve.
Pela primeira vez, um escritor iniciante não está sozinho. Ele tem alguém — ou algo — que pode ler o seu texto, apontar incoerências, sugerir cortes, propor títulos melhores, indicar um tom mais coeso. Um parceiro que nunca se cansa, nunca julga (a não ser que você peça), e que está disponível às três da manhã para revisar aquele parágrafo que te pareceu excessivo, mas que você não tem certeza se deve apagar.
Quem já escreveu com seriedade sabe o quanto isso é valioso. Porque escrever é, em grande parte, reescrever. E reescrever exige feedback. Exige uma leitura que não seja a sua. E, por muito tempo, esse retorno era um luxo: acessível a quem tinha editores, oficinas, colegas generosos. Hoje, está a um prompt de distância.
É claro que a IA não substitui o trabalho criativo, nem resolve o pânico diante da página em branco. Mas ela pode ajudar a organizar o caos. Pode sugerir caminhos. Pode acender luzes num corredor que parecia fechado. Pode, inclusive, dizer com brutal honestidade: “isso aqui está fraco”. E, às vezes, é isso que a gente precisa ouvir.
Para quem escreve com seriedade, a IA não é atalho. É ferramenta. Não é desculpa, é lente. E como toda boa ferramenta, ela não pensa por você — mas te obriga a pensar melhor.
O medo de que ela roube o lugar do escritor é, em parte, uma projeção. A IA só vai substituir quem já queria ser substituído. Para os outros — os que gostam de esculpir ideias, testar formas, reescrever obsessivamente — ela será uma aliada. Fria, sim. Mas incansável.
Os níveis de uso: da sugestão à terceirização total
Se há algo que precisamos aceitar com alguma serenidade é que nem todo uso de IA no processo de escrita é igual. Há graus. Há nuances. Há intenções distintas. O problema, claro, é que do lado de fora, ninguém vê. Mas do lado de dentro, quem escreve sabe: há uma diferença enorme entre pedir um título melhor e terceirizar um livro inteiro.
Talvez valha mapear esses usos — não como julgamento, mas como diagnóstico do novo ecossistema textual que estamos habitando.
No primeiro nível, o autor escreve tudo, sozinho, e usa a IA apenas como corretor ortográfico ou gramatical, algo que já fazíamos há décadas com o Word. No segundo nível, ele busca sugestões: um título mais impactante, sinônimos, uma estrutura possível para organizar ideias ainda soltas. A IA é conselheira, não coautora.
No terceiro nível, ela se torna mais ativa. O autor esboça, a IA reescreve, o autor reescreve a reescrita. Um pingue-pongue criativo onde ainda é o humano quem decide o tom final — mas agora com mais interlocução.
No quarto nível, o esboço parte da máquina: o autor oferece um tema, um estilo, uma ideia, e a IA gera o primeiro rascunho, que será depois lapidado, recortado, refeito. A autoria vira curadoria, edição: o que às vezes é tão poderosa quanto a própria escrita. O Raymond Carver que nós conhecemos e admiramos é, em grande medida, resultado de seu editor, Gordon Lish, que tesourava os contos dele sem piedade.
O minimalismo de Carver é Lish.
Pois é...
No quinto e último nível, o texto é integralmente produzido pela IA. O humano apenas assina — ou nem isso, se preferir o anonimato. Aqui, o gesto criativo foi totalmente delegado.
É claro que esses níveis não são rígidos. Um mesmo autor pode operar em diferentes estágios, dependendo do tipo de texto, do prazo, do humor ou da ambição estética. E é provável que a maioria das pessoas, no futuro, esteja situada entre o segundo e o terceiro níveis: nem puristas, nem farsantes — apenas híbridos.
Essa é a parte que mais desconcerta os nostálgicos: a ideia de que a autoria, tal como a conhecíamos, vai se tornar opaca. Não ilegítima, mas imprecisa. E que isso não será exceção, mas norma.
O fim do mito do escritor solitário (e a nostalgia dos neoludistas)
Durante muito tempo, cultivamos o mito do escritor solitário: alguém trancado num cômodo escuro, escrevendo à luz de um lampião, cercado de páginas amareladas, lutando contra o mundo com uma caneta tinteiro. Essa imagem romântica — e um tanto sofrida — ainda paira sobre o imaginário de quem vê a escrita como um dom puro, intransferível, quase sagrado.
Mas talvez tenha chegado a hora de deixá-la morrer em paz.
Porque, convenhamos: ninguém escreve num vácuo. Todo texto é diálogo. Todo autor tem seus interlocutores — vivos ou mortos, humanos ou agora artificiais. A diferença é que, no passado, os interlocutores estavam nas entrelinhas. Hoje, estão no prompt.
Usar ferramentas inteligentes para conceber, revisar, estruturar ou até coescrever um texto não é necessariamente um desvio ético — pode ser, na verdade, uma evolução no processo criativo. A questão não é se o autor usou IA, mas como. O que ele fez com o que a ferramenta ofereceu. E se houve, ali, um gesto de pensamento autêntico — mesmo que mediado.
Claro, haverá sempre os que resistem. Os que insistem que a única escrita legítima é a que sangra (o que diria Hemmingway disso tudo?). Que um livro só vale se for parido em agonia, sem auxílio, com os dedos feridos e a alma em ruínas. A esses, talvez reste a nostalgia — e o Twitter.
Mas a nova realidade já está dada: textos serão cada vez mais híbridos, e a autoridade será cada vez mais simbólica. Não importará tanto quem escreveu, mas como você é percebido como autor. O ethos vai suplantar o logos. E o estilo, por mais artesanal que seja, será sempre lido sob suspeita.
Chegamos, enfim, ao ponto de virada da história da retórica digital:
até o Mamãefalei vai conseguir debater por escrito sem ter de pedir ajuda pro coleguinha.
(Para quem não lembra: no único debate que tivemos, ele recorreu ao Ricardo Almeida pra escrever o texto pra ele. Agora, basta pedir pro ChatGPT — e talvez nem precisemos soletrar pra ele.)
É esse o mundo em que entramos: um mundo onde as ferramentas estão à disposição de todos, inclusive dos despreparados. E onde a única defesa possível talvez seja escrever com mais densidade, mais responsabilidade e, quem sabe, com uma honestidade que nenhuma máquina consegue simular.
Porque no fim das contas, a IA não substitui o autor. Ela só revela quem nunca foi um.
E, sim, este texto em particular foi escrito com o auxílio de uma inteligência artificial. Ela me ajudou a estruturar, reescrever e revisar o texto, com base em ideias, argumentos e estilo que são meus. A escala de níveis de uso de IA na produção textual apresentada aqui foi elaborada em colaboração com a IA — que, aliás, tem nome: Milton.
Assumir essa colaboração não enfraquece a autoria — ao contrário, a torna mais consciente e ajustada à época em que vivemos. Porque escrever, hoje, também é saber com quem (ou com o quê) se escreve.
Só pensamento.
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Muitos pontos a serem pensados e repensados, mas de qualquer forma um ótimo jeito de se iniciar o dia! Lendo um bom texto com "colaboração". Consegui até mesmo sorrir em alguns momentos, embora de fato seja muito sério o assunto. Enfim...continuo no aguardo de novos textos, é instigante, é divertido, é informador, é um alento para os dias de hoje.
ResponderExcluirUau
ResponderExcluirIsso sim que um texto consciente, Simples. Eu tambem agradeço a Deus porque eu comecei a escrever aos 09 pra 10 anos numa época que não existia Internet. Eu acho que a precisa usar essas ferramentas mais com cuidado pra ela não te dominar ja basta o celular.
Se você quer escrever um romance um conto ou poesias
E preciso ler e muito a leitura te ajuda a ter criatividade isso A IA não substitui.
Quando você termina de ler um texto, mas ele continua conversando com você, porque ele te deixa "uma pulguinha atrás da orelha" (ou várias). Obrigada por ajudar a pensar essa questão de forma mais honesta e realista.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPrezado Henry, que bom ver uma pessoa pública engajada no blogger e que surpresa ver que essa naturalidade de texto a qual eu fui capaz até de imaginar você falando cada palavra foi, na verdade, I.A. Entendi bem tudo que pontuou, pois também sou escritor e compartilho do mesmo tipo de raiocínio a respeito, por isso gostei tanto do texto, mesmo tendo a mãozinha da I.A, embora eu poderia jurar que fosse todo seu, pois são suas palavras, seu vocabulário, seus modos de pausar que vi em cada vírgula de seu modo de colocar as coisas. Esse é o ChatGPT, aos poucos ele vai pegando o jeitão da gente.
ResponderExcluirMeu ebook - conto pequeno - O Engenhoso Hélios foi escrito todo pelo ChatGPT, e no início eu explico e abro claramente essa questão. Eu gosto de criar de minha cabeça mesmo, acho que a graça da ficção ou da crônica de nossos cotidianos é essa: criarmos de nossa própria capacidade intelectual. Mas vejo a I.A como uma ferramenta excelente e não vou repetir tudo que disseste, pois é muito do que penso também.
Tenho um amigo que também gosta desse asunto, vou compartilhar a ele sua postagem.
Um abraço.